A Administração Local, qual longa manus da administração central, é um governo com rosto, com proximidade, diria mesmo, com cumplicidade. Em Portugal, a tradição de pequenos governos locais estende as suas fundações, firmes e vetustas, até aos primórdios da nacionalidade. Os pelourinhos, os forais, verdadeiras cartas de alforria para as localidades, as domus municipalis (lato sensu), fazem parte de uma cultura de descentralização, da qual o nosso país – neste aspecto específico - não pede meças a nenhum outro. As edilidades são, pela Lei e sobretudo, pelo Costume, uma instituição fulcral, tendo desenvolvido, até hoje, um papel determinante no desenvolvimento de cada terra e de cada região. E, mais recentemente, com o 25 de Abril, a submissão do poder local ao salutar escrutínio do voto popular, pareceu adicionar-lhe, “et pour cause”, um valor acrescentado.
Mas, curiosamente, ao que hoje assistimos pelos media, no doce remanso dos nossos lares, é ao total aviltamento e enviesamento da administração do poder local.
A democracia trouxe consigo um esgar de esperança, uma promessa de oportunidades, para um país que, letargicamente, parecia querer mudar. Com a devolução do poder ao povo - que é “quem mais ordena”... - a democracia parecia ser a génese de toda a prosperidade.
Foi aqui que se deu o primeiro mal entendido. Houve um fenómeno tipo “lost in translation” em que alguém se esqueceu de avisar que não é o regime em si próprio que oferece as oportunidades. Bem pelo contrário, são as suas sinergias que criam as condições para a criação de uma sociedade civil livre, autónoma, responsável, culta, ambiciosa e voluntariosa.
Donde, e aqui chegados, desgraçadamente, somos obrigados a constatar que esta sociedade civil não existe, e continua a ser aquilo que, ontem como hoje, desejamos alcançar. Porquê? Porque, precisamente, há quem remedeie este mal e faça do próprio regime e das próprias instituições democráticas, o instrumento da sua ambição.
Num país em que as oportunidades não são muitas, em que a mobilidade social era, até há bem pouco tempo, reduzida, em que a iniciativa privada soçobra à sombra de um estado omnisciente e ubíquo, as instituições políticas são vistas não como um meio de promover o bem comum, mas como um fim em si mesmas, pronto a responder à voracidade alpinista de novos e velhos.
De facto, a falta de saídas profissionais, o recurso à emigração e agora a neo-emigração (fenómeno distinto pois inclui nas suas fileiras não só gente sem meios mas os mais qualificados, é a famosa "fuga de cérebros"), as dificuldades em subsistir num interior cada vez mais desertificado, demandou uma cruzada à oportunidade fácil. A resposta foi, inevitavelmente, orbitar à volta do poder institucional dos aparelhos partidários. Como hipótese de ascensão ao Olimpo dos apaniguados do poder, que assim estendem a mão às prebendas dos barões.
Ora o aprofundamento da cultura democrática não acarretou - longe disso - um amadurecimento da consciência cívica. Do objectivo de uma democracia participada criou-se uma “democracia de carreira”.
Tal falta de denodo por banda dos cidadãos, só se compreende e poderá justificar por uma “iliteracia cívica” endémica. Num país pobre, não há sobras para um aprofundamento cultural, no sentido mais amplo do termo. A baixa taxa de alfabetização, o baixo grau cultural da população, não cria só problemas de produtividade. Arrasta, inexoravelmente, uma inconsciência ético-política complacente, não incentivando a socialização da polis. Ou será que ainda alguém acredita na ideia rousseauniana do “bon sauvage”? Neste campo, quem leva vantagem é Hobbes.
Daí que o exercício do direito de voto, como garante do funcionamento normal das instituições, ao permitir a putativa escolha dos melhores, não seja uma escrutínio real dos mandatários, por banda dos mandantes. Metamorfoseou-se num instrumento, perfeito e inatacável, de legitimação formal de cliques aparelhísticas. Criando a perversão ideal do sistema: então o voto não é universal? Na verdade, contra este facto, que é argumento bastante, não há réplica.
Por isso, é ver os “Jotinhas” essa incubadora do caciquismo militante, os barões partidários, as distritais e as concelhias, prenhes de gente ávida e trabalhadora, que realmente se esforça por conseguir um lugar ou um posto que lhe dê um título, que lhe permita exercer um pequeno poder, quase sempre de forma despótica e discricionária.
O ciclo fecha-se com a actual desistência daqueles que mais deveriam estar alerta, beneficiando do beneplácito e incentivo de uma sociedade cada vez mais individualista e egocêntrica.
Felizmente, ainda, que assistimos a fenómenos inconcebíveis. É sinal que se vão descobrindo. Porque, miseravelmente, o real problema são os milhares que todos os dias, meses e anos, e em todas as eleições vão levando ou tentam levar a água ao seu moinho, por esse país fora…!
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