Alexandra Reis, in Jornal Público
Embora ainda residual, o fenómeno da democracia participativa está a ganhar peso nos municípios portugueses, onde cada vez mais as populações são chamadas a dar sugestões ou até a definir elas próprias as prioridades da gestão autárquica. Há quem veja nele um antídoto para a apatia política generalizada. Para outros, porém, do que se trata aqui é da pura demissão do exercício do poder.
"Que intervenções considera prioritárias na sua freguesia? Queremos conhecer de forma rigorosa as suas necessidades. Participe!". Convites deste género estão a ganhar peso nas autarquias do país, onde cada vez mais os cidadãos estão a ser chamados a participar nos processos de gestão e decisão política.
O fenómeno da democracia participativa é ainda residual mas crescente nos municípios portugueses, que vêem nele uma ferramenta para melhorarem o serviço a prestar às populações. Mas também há quem tenda a ver nos convites dos eleitos uma alienação da responsabilidade das suas decisões.
Em Setúbal há um Gabinete da Participação Cidadã. Em Almada existem Fóruns de Participação sobre projectos estratégicos para o município. Santarém, Beja, Serpa e Moita promovem reuniões públicas descentralizadas onde se debatem os principais problemas das freguesias. E Palmela, São Brás de Alportel e Tomar, entre outras câmaras do país, organizam o chamado Orçamento Participativo. A maior parte destes municípios são liderados por autarcas comunistas, mas à direita também começa a haver quem aposte neste tipo de instrumentos para assim melhorar a gestão das cidades.
"É uma tendência pequena quando comparada com outros países europeus", observa a socióloga Isabel Guerra, para quem estas iniciativas deveriam acontecer ainda mais em Portugal, pois era "um sinal positivo de mudança da cultura política". "São minoritárias, mas estão a crescer", precisa Luís Guerreiro, coordenador da comissão técnica do Orçamento Participativo na Câmara de Palmela, pioneira no país na elaboração deste instrumento.
Saber quais os investimentos que a população considera prioritários e "ficar a par dos problemas que não chegam à câmara" são as principais justificações que as autarquias dão para aderir à iniciativa. "Trinta anos depois do 25 de Abril, mal seria se não fosse assim", diz Marlene Guerreiro, porta-voz da Câmara de São Brás de Alportel, uma das quatro autarquias nacionais que aderiram pela primeira vez este ano ao Orçamento Participativo.
Para o presidente social-democrata da Junta de Freguesia da Agualva, outra das autarquias estreantes - Tomar e a junta lisboeta de Carnide também só aderiram agora -, "esta forma de estar na política vai muito além da diferença entre esquerda e direita". "O Orçamento Participativo é um excelente instrumento porque ouvimos as pessoas. E quem mais do que elas para sabermos o que faz falta na freguesia onde vivem?", justifica Rui Castelhano. "Está sempre muita gente".
A democracia participativa, um conceito que ganhou relevo com o Fórum Social Mundial, defende o diálogo e a chamada dos cidadãos a participar no exercício do poder como forma de promover o desenvolvimento sustentável. "Assenta na ideia de que os cidadãos devem participar directamente nas decisões políticas e não apenas, como quer a democracia representativa, na escolha dos decisores políticos", define o sociólogo Boaventura Sousa Santos, para quem "o Orçamento Participativo tem sido um meio notável de promover a participação dos cidadãos em decisões" até aqui da competência exclusiva dos executivos municipais.
Mas será que isto faz sentido, tendo em conta que as populações já delegam, através do voto secreto e universal, o exercício do poder para que representantes eleitos decidam por elas?
Mónica Brito Vieira, investigadora na Universidade de Cambridge, explica que "a maior parte dos defensores da democracia participativa não advoga a extinção do sistema representativo, mas sim que este seja complementado por práticas democráticas de natureza mais participativa". A ideia é estimular "o envolvimento directo dos cidadãos nas decisões políticas que mais directamente lhes dizem respeito", o que, acrescenta, funciona como um "antídoto para a sua apatia política".
Filipe Carreira da Silva, investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, considera também que os processos de consulta pública são uma forma de combater o "alheamento" dos cidadãos relativamente à praxis política. Estes, "cada vez mais cépticos quanto às classes dirigentes, não aceitam que questões que lhes dizem respeito possam ser decididas ao arrepio das suas opiniões" e, por isso, participam. A adesão da população aos processos de consulta pública "é variável" consoante a questão lhes diga mais ou menos respeito. "Participam mais as pessoas com assuntos por resolver", diz Luís Guerreiro. Mas, regra geral, as autarquias ouvidas pelo PÚBLICO referem que "não aparecem multidões, mas está sempre muita gente".
Uma forma de ganhar votos?
Já João Simões Dias, advogado e professor de Direito, vê na consulta às populações "uma forma de o autarca se alhear da responsabilidade das suas decisões", o que pode levar, em alguns casos, "a uma demissão do exercício do poder". O autarca tem, desta forma, "um maior apoio e pode defender-se de eventuais críticas dizendo que aprovou algo porque a população assim quis".
Luís Guerreiro contrapõe que a auscultação da população contribui para uma "gestão mais transparente e aberta que enriquece a democracia e evita a corrupção". "A câmara comete menos erros na decisão se ela passar por uma discussão pública", considera o representante da Câmara de Palmela.
Já Marlene Guerreiro diz que "o executivo nunca se pode alhear da responsabilidade das suas decisões, pois este é um mero processo de consulta", onde a última palavra cabe aos eleitos.
Segundo Filipe Carreira da Silva, "um cínico diria que isso [os processos de participação cidadã] se explica pelas vantagens eleitorais de que os autarcas esperam vir a beneficiar". Contudo, na opinião do investigador, "a principal razão prende-se com uma mudança na cultura política dos países mais desenvolvidos e que no nosso país ganha expressão após o 25 de Abril".
Luís Guerreiro considera que "houve uma altura em que havia o mito de que os processos de auscultação da população eram uma forma de ganhar votos, mas neste momento isso não acontece". O responsável cita um estudo feito por uma universidade alemã, ainda não publicado, onde se verificou que em 30 cidades europeias com projectos de Orçamento Participativo "não há relação directa" entre estes e as vantagens eleitorais que eles podem trazer para os autarcas.
A Junta de Freguesia de Algueirão-Mem Martins, Sintra, pretende executar 11 projectos de recuperação urbana, mas antes quis saber o que a população achava deles. Para isso lançou um concurso de ideias através do qual enviou aos munícipes 31 mil inquéritos, com informações e imagens de cada um dos projectos. Perto de quatro centenas de respostas foram recebidas, o que leva o presidente da junta, Manuel do Cabo, a congratular-se com a iniciativa.
"Queremos ouvir a população para escolher o melhor projecto", explica o autarca, acrescentando que com isso "não se quer aliviar de qualquer responsabilidade nas suas decisões".
Os inquéritos, lançados em Maio e cujas respostas foram recebidas até ao final do mês passado, permitiram à junta saber que "a grande preocupação da população tem a ver com os espaços verdes, o que vai ao encontro das propostas" da autarquia, observa Paulo Noguez, membro do júri encarregue de avaliar as sugestões recebidas. "Quanto melhor um decisor ou uma empresa conhece o seu cliente, melhor será a sua estratégia e o serviço a prestar", justifica. "A vila não tem arranjo".
Algueirão-Mem Martins é a maior freguesia da Europa. Segundo os Censos de 2001, tem cerca de 63 mil habitantes para uma área de 15,9 quilómetros quadrados. Dez anos antes tinha 40 mil residentes. Esta explosão demográfica foi acompanhada de um crescimento urbanístico desregrado, que não levou em conta as infra-estruturas e os equipamentos sociais necessários.
"Em termos urbanísticos, a vila não tem arranjo. Não há estacionamento. Não há um largo. As ruas são muito apertadas. Os prédios crescem para cima das estradas. Não há um jardim ou um centro bonito", resume Rosalina Guerreiro, que trabalha num café junto ao largo da estação. "Ouvir a população é sempre bom. E já está na hora de mudar o aspecto da vila", diz a comerciante, mostrando o seu apoio inequívoco à iniciativa da junta.
Segundo Manuel do Cabo, o objectivo dos 11 projectos é "redesenhar a paisagem da vila", com a construção de rotundas iluminadas, espelhos de água na bacia de retenção da Tapada das Mercês e intervenções em diversos espaços verdes. A requalificação passa ainda pelo largo da estação e pela construção de um túnel "que sirva de escoamento ao trânsito proveniente do IC19".
O projecto em que a população deposita mais esperanças - a requalificação da estação e do seu largo e a criação de estacionamento em volta - será também o que mais tempo levará a concretizar. "Poderá ser algo para 15 anos. É uma obra de grande envergadura, que envolve demolições. Por outro lado, queremos um programa Polis para ali", explica Manuel do Cabo.
As sugestões dos munícipes serão agora avaliadas por um júri "que vai compará-las com as 11 propostas". Posteriormente, adianta o autarca, alunos de arquitectura da Universidade Lusíada, com base nas ideias dos munícipes, apresentam os estudos para estes projectos. A partir desse momento vai ser lançado o concurso de execução dos projectos, seguindo-se a fase de obra."Em Junho de 2007, a freguesia vai entrar em estaleiro e as obras prolongam-se até ao final do mandato", resume Manuel do Cabo.
A elaboração do orçamento de determinada câmara ou junta de freguesia é submetida a consulta pública, através de reuniões descentralizadas com a população. O município apresenta as suas propostas orçamentais e a população opina e dá sugestões, que podem ou não ser tidas em conta. Mas a última palavra é sempre dos eleitos locais, uma vez que o enquadramento legal português determina que são os órgãos executivos que propõem os orçamentos e os deliberativos que os aprovam, vendando essa possibilidade aos cidadãos.
Em Portugal, o Orçamento Participativo assume assim um carácter meramente consultivo. "Quais as áreas de intervenção que considera prioritárias?" Esta é a questão chave que surge em praticamente todos os inquéritos e a partir da qual se desenvolvem as restantes perguntas. Os inquéritos são distribuídos por todos os munícipes e servem para recolher opiniões ou sugestões, surgindo normalmente associados a outros instrumentos da democracia participativa. O modelo seguido é regra geral o do teste americano, em que quem o preenche só tem de colocar a cruzinha na opção que considera a mais adequada. A informação recolhida é depois tratada, podendo integrar ou não o plano de actividades da autarquia.
São reuniões para debate público de projectos considerados estratégicos para o município. Têm uma determinada frequência e podem ocorrer em diferentes locais do concelho, de acordo com a área de influência do projecto. O objectivo é que a população os conheça e tome contacto com o seu ponto de situação. Os Fóruns de Participação são dirigidos pelos autarcas e técnicos responsáveis pelos projectos. A população tem a oportunidade de colocar questões e sugerir ideias.
As autarquias que promovem reuniões públicas descentralizadas dizem que o seu objectivo "é aproximar a gestão camarária de todos os munícipes e contactar directamente com as suas necessidades". Realizam-se, normalmente, nas diferentes freguesias do concelho e são subordinadas a um determinado tema estratégico para o local onde decorrem. Além da população, podem também participar associações culturais, sociais ou comerciais locais. A ideia é "discutir o problema em sede própria".
É a mais vanguardista das ferramentas aqui tratadas e a primeira a fazer uso das modernas tecnologias de informação e comunicação. Consiste na interacção em tempo real, através de mensagens escritas, entre os munícipes e o presidente de um dado município. A "conversa" decorre via Internet, normalmente num chat de conversação. A ideia é colocar questões, trocar ideias e apresentar sugestões ao autarca sobre o quotidiano do concelho. Os chats, em que só entra quem tenha uma senha e uma palavra passe, ocorrem sempre em dias e horas marcados.
É um instrumento de "participação directa dos cidadãos eleitores de uma determinada circunscrição autárquica que, através do voto, exprimem a sua opinião sobre questões concretas da competência de órgãos das autarquias locais", lê-se no site da Comissão Nacional de Eleições. Em Portugal ainda só tiveram lugar dois referendos locais, ambos em 1999. O primeiro aconteceu a 25 de Abril na freguesia de Serreleis, Viana do Castelo, cuja autarquia quis saber se os munícipes concordavam com a construção de um polidesportivo nas traseiras do salão paroquial. O segundo, a 13 de Junho daquele ano, foi em Tavira.
A pergunta era a seguinte: "Concorda com a demolição do antigo reservatório de água do Alto de Santa Maria?". Em ambos os casos venceu o "não". O Orçamento Participativo (OP) de Porto Alegre, no estado brasileiro do Rio Grande do Sul, foi criado em 1989 e é considerado pela Organização das Nações Unidas como "uma das 40 melhores práticas de gestão pública urbana no mundo". Também o Banco Mundial "reconhece o processo de participação popular de Porto Alegre como um exemplo bem sucedido de acção comum entre Governo e sociedade civil", lê-se no site da prefeitura desta cidade. Porto Alegre foi pioneira na criação deste instrumento, sendo por isso um exemplo onde cidades de todo o mundo, inclusive Portugal, se inspiram para a elaboração dos seus OP. Na cidade brasileira, o OP traduz-se num processo onde a população decide, de forma directa, a aplicação dos recursos em obras e serviços que serão executados pela administração municipal.
"É um processo regularizado de intervenção permanente dos cidadãos nas decisões municipais", explica o sociólogo Boaventura Sousa Santos no livro Democratizar a Democracia. Ao contrário do que acontece em Portugal, em Porto Alegre os cidadãos têm um voto vinculativo quanto à distribuição das verbas do orçamento. Alfredo Alejandro Gugliano, investigador em Ciência Política e Sociologia no Brasil, explica no seu estudo Participação e Governo Local que em Porto Alegre "o processo participativo não está fundamentado em estruturas institucionais descentralizadas (subprefeituras, por exemplo), mas em processos de assembleias cidadãs por zona de moradia e por temas de interesse". A cidade está dividida em 16 regiões de forma a "agilizar a participação".
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